Dialogismo bakhtiniano e Valter Hugo Mãe
Nos últimos dias estive a revisitar algumas obras de Michail Bakhtin, e ao me deparar com a reflexão acerca de texto, análise linguística e dialogismo, lembrei rapidamente de um romance que havia lido há algumas semanas: A desumanização, de Valter Hugo Mãe, um romance contemporâneo que surpreende pelo seu enredo, pois nos traz uma narradora-personagem de apenas 10 anos, moradora de uma pequena aldeia na Islandia, e que acabara de perder sua irmã gêmea, Sigridur. Além disso, o autor nos envolve com uma linguagem extremamente poética, utilizando-se por exemplo, de metalinguagem. É através desse recurso que ele mostra uma cena que define a concepção de Bakhtin sobre dialogismo. Vejamos:
"Sobre
a beleza o meu pai também explicava: só existe a beleza que se diz. Só existe a
beleza se existir interlocutor. A beleza da lagoa é sempre alguém. Porque a
beleza da lagoa só acontece porque a posso partilhar. Se não houver ninguém,
nem a necessidade de encontrar a beleza existe nem a lagoa será bela. A beleza
é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza apenas pela expectativa da
reunião com o outro. (...)Todas as lagoas do mundo dependem de sermos ao menos
dois. Para que um veja e o outro ouça. Sem um diálogo não há beleza e não há
lagoa. " (A desumanização, Valter Hugo Mãe)
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem ele nos diz que “a consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no processo de interação verbal". Em Questões de Literatura e Estética, Bakhtin afirma: "Estudar o discurso em si mesmo, ignorar a sua orientação, externa, é algo tão absurdo como estudar o sofrimento psíquico fora da realidade a que está dirigido e pela qual ele é determinado." Em Estética da criação verbal: "O enunciado é um fenômeno complexo, polimorfo, desde que o analisemos não mais isoladamente, mas em sua relação com o autor (o locutor) e enquanto elo na cadeia da comunicação verbal, em sua relação com os outros enunciados (uma relação que não se costuma procurar no plano verbal, estilístico-composicional, mas no plano do objeto do sentido). O enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal."
A lagoa, na narrativa de Valter Hugo Mãe, é o próprio discurso, o texto, em si. Quando ele diz "Porque a beleza da lagoa só acontece porque a posso partilhar", associamos à ideia de que o discurso e o texto só acontecem porque há possibilidade do elo, temos um locutor e interlocutor, possibilitando assim, a troca, e o dialogismo. É a partir da ideia de que a beleza, assim como os textos, só acontecem, só são, quando estão relacionados a um contexto (e nesse temos, locutor e interlocutor), que Bakhtin, nas obras Questões de
Literatura e estética: a teoria do romance, Estética da Criação
Verbal, e Marxismo e Filosofia
da Linguagem recorrentemente nos faz refletir sobre a importância do diálogo, da troca. Pois é no discurso dialógico que os elos da comunicação verbal são construídos, o modo de constituição dos sujeitos, assim como o próprio diálogo, só é (re)construído através da linguagem.
Citações:
Citações:
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora Hucitec, 2002.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MÃE, Valter Hugo. A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999.
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