A obscena senhora D. e Perto do Coração Selvagem
Publicado em 1982, A Obscena Senhora D. é uma das obras do universo hilstiano que mais revela indagações e revelações, a inquietação metafísica, e a experiencia amorosa, que sobretudo vaga entre o erótico e o pornográfico, além do lírico com a linguagem crua e o humor negro.
Perto do Coração Selvagem é a primeira obra publicada de Clarice Lispector, que narra, com o estilo introspectivo característico da autora, o cotidiano e os meandros de Joana. Publicada em 1943, a obra traz uma narrativa que remete ao mundo onírico, e ao paradoxo vivido entre o íntimo e as vivencias da protagonista.
1) A definição das coisas, a procura do eu
"Por que o ouro é ouro? Por que o dinheiro é dinheiro?
Por que me chamo Hillé e estou na Terra? E aprendi o nome das coisas,
das gentes, deve haver muita coisa sem nome, milhares de coisas sem nome, e nem
porisso elas deixam de ser o que são, eu se não fosse Hillé seria quem? Alguém
olhando e sentindo o mundo" (A Obscena Senhora D., Hilda Hilst)
"O que sou hoje, nesse momento? Uma folha plana, muda,
caída sobre a terra. Nenhum movimento de ar balançando-a. Mal respirando para
não se acordar. Mas por que, sobretudo por que não usar as palavras próprias e
enovelar-me, aconchegar-me em imagens? Por que me chamar de folha morta quando
sou apenas um homem de braços cruzados?" (Perto do Coração Selvagem, Clarice Lispector)
2) Deus, abismo
"olha Hillé a face de Deus
onde onde?
olha o abismo e vê
eu vejo nada
debruça-te mais agora
só névoa e fundura
é isso. adora-O."
(A Obscena Senhora D., Hilda Hilst)
"Meu Deus, pelo menos comunicai-me com elas, fazei realidade
meu desejo de beijá-las. De sentir nos lábios a sua luz, senti-la fulgurar
dentro do corpo, deixando-o faiscante e transparente, fresco e úmido como os
minutos que antecedem a madrugada. Por que surgem em mim essas sedes estranhas?
A chuva e as estrelas, essa mistura fria e densa me acordou, abriu as portas de
meu bosque verde e sombrio, desse bosque com cheiro de abismo onde corre água.
E uniu-o à noite."(Perto do Coração Selvagem, Clarice Lispector)
3) Relação entre corpo e espírito
"os pequenos espaços do teu corpo de carne são do
Todopoderoso agora propriedades, como estão, Ehud, teus pequenos espaços de
carne? E teu esôfago, tua língua, e os pelos das tuas sobrancelhas eriçadas, e
as pálpebras pálidas, e as mãos e as palmas? E o sexo, Ehud? se cuidasses um
pouco do teu corpo, Hillé, andas curvada o que é o corpo?" (A Obscena Senhora D., Hilda Hilst)
"Sinto quem sou e a impressão está alojada na parte
alta do cérebro, nos lábios — na língua principalmente —, na superfície dos
braços e também correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde mesmo,
eu não sei dizer." (Perto do Coração Selvagem, Clarice Lispector)
"Se a gente mastigasse a carne um do outro, que gosto? e uma
sopa de tornozelo? E uma sopa de pés? Na comida não se põe pé de porco? Por que
tudo deve morrer hen Ehud? Por que matam os animais hen? Pra gente comer. É
horrível comer, não? Tudo vai descendo pelo tubo, depois vira massa, depois
vira bosta. Fecha os olhos e tenta pensar no teu corpo lá dentro. Sangue,
mexeção. Pega o microscópio. Ah, eu não. Que coisa a gente, a carne, unha e
cabelo, que cores aqui por dentro, violeta vermelho. Te olha. Onde você está agora?
Tô olhando a barriga. É horrível Ehud. E você? Tô olhando o pulmão. Estufa e
espreme. Tudo entra dentro de mim, tudo sai." (A Obscena Senhora D., Hilda Hilst)
"Eis-me de volta ao corpo. Voltar ao meu corpo. Quando me
surpreendo ao fundo do espelho assusto me. Mal posso acreditar que tenho
limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pensando
dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma. Quando me
surpreendo ao espelho não me assusto porque me ache feia ou bonita. É que me
descubro de outra qualidade. Depois de não me ver há muito quase esqueço que
sou humana, esqueço meu passado e sou com a mesma libertação de fim e de consciência quanto uma coisa apenas viva." (Perto do Coração Selvagem, Clarice Lispector)
4) Ser animal
"Ando galopando desde sempre búfalo zebu girafa, derepente
despenco sobre as quatro patas e me afundo nos capins resfolegando, sou um
grande animal, úmido, lúcido, te procuro ainda, agora não articulo, também não
sou mudo, uns urros, uns finos fortes escapam da garganta, agora eu búfalo
mergulho." (A Obscena Senhora D., Hilda Hilst)
"Sim, ela sentia dentro de si um animal perfeito.
Repugnava-lhe deixar um dia esse animal solto. Por medo talvez da falta de
estética. Ou receio de alguma revelação… Não, não, repetia-se ela — é preciso
não ter medo de criar."(Perto do Coração Selvagem, Clarice Lispector)
Sobre as autoras:
No artigo A obscena Senhora D.: Uma narrativa de desloacamento, José Antonio Cavalcanti diz, a respeito das autoras:
"Na literatura de Hilda Hilst a preocupação com a palavra não
está presente de modo semelhante ao da obra de Clarice Lispector. O texto
hilstiano não se fixa naquilo que a palavra revela, mas naquilo que é inominável
na linguagem. Busca a senha iluminadora do vazio no próprio vazio, resulta,
dessa forma, de um intrincado jogo de máscaras (já que nenhum rosto é possível)
textuais no qual se busca a transcendência do existir."
Referências:
Citações:
Hislt, Hilda. A obscena senhora D. São Paulo: Globo, 2001.
Lispector, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1944.
Citação do artigo no site: http://www.uel.br/portal/
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